A Lei nº 11.705/2008, popularmente conhecida como Lei Seca, representa um marco no ordenamento jurídico brasileiro no combate à condução de veículos sob a influência de álcool ou substâncias psicoativas. Com o objetivo de reduzir acidentes de trânsito e promover a segurança viária, a legislação adotou uma postura rigorosa, estabelecendo tolerância zero para a presença de álcool no organismo do condutor e impondo penalidades severas, como multas, suspensão da habilitação e até prisão em casos mais graves. No entanto, em um sistema jurídico que busca equilibrar a repressão penal com medidas despenalizadoras, é relevante analisar a aplicação da Lei Seca à luz do Acordo de Não Persecução Penal, introduzido no sistema processual penal brasileiro pelo art. 28-A do Código de Processo Penal (CPP), por meio da Lei nº 13.964/2019, o chamado Pacote Anticrime.
A Rigidez da Lei Seca e seus Efeitos Práticos
A Lei Seca, ao alterar o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), trouxe consigo um regime de tolerância praticamente nula para a condução sob efeito de álcool. Conforme dispõe o art. 165 do CTB, a infração administrativa é configurada com qualquer concentração de álcool por litro de sangue ou ar alveolar, sendo excetuando-se apenas margens técnicas de erro dos equipamentos de medição, passível de 0,04 mg/L. Já o art. 306 do CTB tipifica o crime de dirigir sob a influência de álcool ou substâncias psicoativas, com penas de detenção de seis meses a três anos, multa e suspensão do direito de dirigir.
Apesar de seu caráter repressivo, a Lei Seca tem sido eficaz na redução de acidentes de trânsito relacionados ao consumo de álcool. Contudo, sua aplicação rigorosa, especialmente em casos de baixa concentração alcoólica ou de condutores sem antecedentes criminais, tem levantado questionamentos sobre a necessidade de medidas alternativas que promovam a despenalização e a ressocialização, sem abrir mão da segurança viária.
O Acordo de Não Persecução Penal como Instrumento Despenalizador
O art. 28-A do CPP, introduzido pelo Pacote Anticrime, trouxe ao sistema processual penal brasileiro a figura do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP). Esse instituto permite que o Ministério Público, em casos de crimes com pena máxima não superior a quatro anos, ofereça ao acusado a possibilidade de cumprir condições específicas, como reparação do dano, prestação de serviços à comunidade ou participação em programas educativos, em troca do não oferecimento da denúncia de ação penal. Trata-se de um mecanismo que visa descongestionar o sistema judiciário e promover soluções consensuais, priorizando a reparação do dano e a prevenção de novos delitos.
No contexto da Lei Seca, o ANPP pode ser aplicado em casos de condutores que, embora tenham cometido o crime previsto no art. 306 do CTB, apresentam baixo potencial ofensivo e não representam risco significativo à sociedade. Por exemplo, um motorista que dirige com uma concentração alcoólica ligeiramente acima do limite permitido, sem histórico de reincidência e sem causar acidentes ou danos a terceiros, poderia se beneficiar do acordo, desde que cumprisse as condições estabelecidas pelo Ministério Público, como a participação em programas de conscientização sobre os perigos da direção sob efeito de álcool.
Comparação entre a Rigidez da Lei Seca e a Flexibilidade do ANPP
Enquanto a Lei Seca adota uma postura intransigente, visando coibir de forma absoluta a condução sob efeito de álcool, o ANPP introduz um elemento de flexibilidade no sistema penal, permitindo que casos de menor gravidade sejam resolvidos de forma mais célere e menos onerosa para o Estado e para o acusado. Essa dualidade reflete a tensão entre dois princípios fundamentais do Direito Penal moderno: a prevenção geral (que busca dissuadir a prática de crimes por meio da punição exemplar) e a prevenção especial (que visa à ressocialização do infrator e à redução da reincidência).
No caso da Lei Seca, a prevenção geral é evidente, uma vez que a legislação busca inibir a condução sob efeito de álcool por meio de penalidades severas. Já o ANPP, ao permitir a suspensão da ação penal em troca do cumprimento de condições alternativas, prioriza a prevenção especial, reconhecendo que nem todos os casos demandam a aplicação de sanções penais tradicionais.
Conclusão
A Lei Seca, com seu caráter rigoroso, desempenha um papel fundamental na proteção da vida e da integridade física no trânsito. No entanto, a introdução do Acordo de Não Persecução Penal pelo Pacote Anticrime representa um avanço no sentido de humanizar o sistema penal, oferecendo uma alternativa despenalizadora para casos de menor gravidade. A aplicação do ANPP no contexto da Lei Seca pode contribuir para um equilíbrio entre a repressão necessária e a promoção de medidas educativas e ressocializadoras, sem comprometer os objetivos de segurança viária.
Portanto, cabe ao operador do Direito, em especial ao Ministério Público, avaliar com prudência e proporcionalidade a aplicação do ANPP nos casos de infração à Lei Seca, considerando as circunstâncias do fato, o perfil do infrator e os interesses da sociedade, a recusa injustificada do MP em oferecer ANPP é ilegal dessa forma, será possível conciliar a efetividade da legislação de trânsito com os princípios de justiça restaurativa e eficiência processual.
Ralf Rodrigo Viegas da Silva
Advogado Criminalista
Especialista em Direito Penal e Processual Penal
Graduado em Gestão Pública